REFLEXÃO EM FOCO - O que resta [ará] de nós?
texto de Talita Guimarães - Ensaios em Foco
“Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.
O que posso fazer agora?
Somente seu enterro e rezar por sua alma.”
(Chicó em O Auto da Compadecida, obra de Ariano Suassuna)
Um dia você acorda e a primeira notícia que recebe é que alguém
de quem gosta muito já não respira mais.
Aí quem perde o ar é você,
sufocado pela dúvida de como continuar vivo
sabendo que alguém querido já não estará mais presente.
A morte caminha lado a lado com a vida
e custamos muito a nos dar conta disso.
Como se estivéssemos falando de um mal distante,
tratamos a morte que vemos diariamente nos noticiários
com a consciência de quem acredita
que terá a chance de marcar a própria hora.
Como se tivéssemos algum controle sobre o tempo que nos é dado...
Isso para não falar do quanto desperdiçamos o convívio,
do quanto sonhamos com futuros que podem não estar ao nosso alcance,
do quanto dizemos não e empurramos para depois
a vida que deve ser sentida a cada instante e não apenas planejada ano a ano.
Volto ao início, à dúvida sufocante que surge quando vemos o tempo
de alguém se esgotar irremediavelmente e me pergunto:
estaremos vivendo muito mais em função
de um tempo que ainda não nos foi dado?
E o tempo que nos é dado de convivência com outros?
O que nos resta quando pessoas que amamos vão embora antes de nós?
“Somente seu enterro e rezar por sua alma”,
como se resigna o personagem do genial livro do paraibano Suassuna?
Haverá entre nós, a capacidade de deixar mais de si aos outros,
aproveitar melhor o tempo presente?
Como a tristeza que a morte traz pode se converter
na consciência passageira
de que não sentiremos mais o prazer da companhia gostosa
da pessoa querida?
A morte lança mais perguntas sobre a existência do que a própria vida.
Esta semana perdi um tio.
Há um ano e sete meses perdi minha avó.
No mesmo período, a cultura perdeu Mestre Antônio Vieira.
Falo em perder porque é esse o sentimento que surge
quando alguém morre.
Perdemos a presença, os sorrisos, os abraços, a voz,
e a admiração ainda que silenciosa do jeito de ser das pessoas.
Mas perdemos principalmente a chance
de viver mais e melhor na companhia de quem se vai.
Infelizmente, é a perda quem muitas vezes mostra
o quanto alguém faz falta.
Por isso a morte traz dor incalculável para a consciência.
Choramos a ausência de uma segunda chance.
Lamentamos o que não tem mais jeito.
O que poderia ter sido e não foi.
Culpamos a dinâmica da vida
quando o erro é resultado das ações de quem vive.
Por tudo isso, não sou pessimista em relação à morte.
Sou preocupada com os vivos.
Com a forma como as pessoas vivem,
as relações que estabelecem,
as escolhas que fazem e que nunca dizem respeito apenas a elas.
Afinal, as lições da humanidade não tem ensinado
uma independência que possa planejar com absoluta certeza
a hora de cada um deixar este mundo
assegurando a felicidade de quem fica.
Vivemos arriscando no escuro,
no tempo que não temos.
Ignoramos a margem de erro.
Na hora da morte é que vejo a importância da consciência em torno da vida.
Quem morre, descansa.
Quem vive, sofre.
Mesmo sabendo que a morte é tão natural
quanto o nascimento, sofremos a cada partida.
Sendo assim, o que dizer para consolar
alguém cuja dor parece mesmo incalculável?
Coloquei-me diante desta questão a fim de resolvê-la.
Sou altruísta.
Não queria que a pessoa que ficou sofresse a dor inconsolável da perda.
Queria poupá-la da inconformação,
da revolta, da solidão.
Conheci à perda da avó,
a dor incalculável, revoltante, inconsolável
e tive de buscar conforto sozinha.
Não queria, desta vez,
saber de alguém tendo reação parecida.
Penso que é a vida quem dignifica a morte.
A mobilização diminui o sofrimento.
O abraço conforta o corpo,
o pensamento compartilhado, a alma.
Para tanto, precisei lembrar-me de apenas uma frase,
sabiamente colocada por Antoine Saint-Exupery
“Aqueles que passam por nós não vão sós,
não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”.
Curiosamente, há pouco tempo, conversava com uma amiga
sobre o que as pessoas significam depois que morrem.
Comentávamos o que cada um de nós é capaz de deixar
às pessoas que vivem conosco.
Perguntávamos-nos, a título de reflexão,
o que deixaríamos hoje ao mundo caso partíssemos.
Pendências ou boas lembranças?
A certeza dos grandes amigos que fomos
para quem pode desfrutar de nossa amizade
ou a imagem de jovens que planejavam feitos promissores
para um futuro que nunca chegaria?
Feitos que não passariam de promessas,
no caso de uma partida,
assim,
aparentemente do nada.
Lembrando do trecho de “O Auto da Compadecida”,
quando o Chicó (interpretado espetacularmente no filme por Selton Melo)
diz que a morte é um mistério do qual ninguém escapa,
irremediável,
porque tudo que é vivo morre,
penso com mais certeza que enquanto estamos vivos
é que precisamos pensar mais
na forma como vivemos e nas escolhas que fazemos
sem deixar passar as chances, os momentos,
enfim, a vida que merece ser vivida.
Para que além de aproveitarmos cada segundo
"como se não houvesse amanhã" sejamos capazes de partir
na hora que a matéria tiver de morrer sim,
mas sem que a alma, a essência da vida,
se perca junto.
Porque sempre há quem fique e sinta
que um pedaço de si já não existe mais.
Mas se nesse momento, quem ficar
sentir que enquanto vivos, tivemos momentos que valeram a pena,
talvez a dor dos vivos em relação a morte
não seja mais tão devastadora.
Quem somos e o que fazemos hoje, agora?
Olhemos então para o que já deixamos para trás,
o que já marcou nosso tempo de vida até hoje.
O que ainda há para fazer?
Quantos abraços, sorrisos, palavras e vivências
ainda temos para dar às pessoas?
O que ainda nos falta aprender, ensinar?
Não há como saber quanto tempo ainda teremos.
Chego a conclusão que este sim é o mistério.
O desafio que separa a graça da vida da dor da morte.